em construção permanente






terça-feira, 23 de novembro de 2010

Tem alguma coisa errada

  Chegamos ao hospital em vinte minutos. A impressão que fiquei é que nos finais de semana os ônibus não demoram tanto. Mera impressão. A falta de pressa provoca de imediato, esta falsa sensação.
  Ao pisar na “recepção” do hospital, havia pelo menos umas dez pessoas em nossa frente, aguardando para serem chamadas pelo clínico geral. Pensei – hoje vai ser rápido! Dez pessoas em uma fila de um hospital público é um fato a ser comemorado. Não só por mim, mas por todo o governo. Já que somos iludidos através da propaganda política que a saúde pública tem melhorado a cada dia em nosso país.
  Depois de trinta minutos de espera, minha mulher reclamou (comigo) que não agüentava mais esperar. Os trinta minutos foram suficientes para agravarem as dores em seu corpo, supostamente provocada por uma possível gripe. Então, levantei a minha bunda que estava quadrada, do banco de madeira, completamente desconfortável e fui falar com o cara que fazia as fichas.
  Perguntei qual era a previsão de atendimento e ele me respondeu com um meio sorriso, irônico, que era de mais ou menos duas horas.
  Sem titubear respondi com uma pergunta fazendo uma cara de espanto - O quê? Como assim? Só têm dez pessoas na frente e como é possível demorar tanto assim? Ele deu de ombros e disse que só tinha um médico atendendo naquele momento. Minha mulher não tinha mais forças nem para reclamar da dor e ainda por cima quando dei a notícia que iria demorar mais um bom tempo, ela quase chorou.
  O jeito foi sentar novamente no banco e esperar com o máximo de paciência possível.
  O tempo ia passando e a fila aumentando. Eu sentia pena daqueles que estavam no final da fila e minha vontade era de pendurar uma faixa avisando qual era o tempo de espera. Mas se eu fizesse isso ia causar mais agonia ou provocar uma revolta sem precedentes. Então desisti rapidamente da idéia.
  Foi aí que percebi qual era o real motivo da demora.
  Um motoqueiro tinha acabado de deixar um tipo de comida dessas redes de Fast Food.
  Possivelmente para o médico que, pelo horário, devia estar virado desde a madrugada.
  Sem saber, o motoqueiro acabará de foder ainda mais com todos.
  Agora, só um milagre da “auto-cura” para acabar com o sofrimento da minha mulher e das outras pessoas que ali, compartilhavam entre si, os segredos das dores do corpo.
  Durante a espera, chegou um casal de velhinhos. Os dois com a cabeça coberta de fios brancos e ambos apoiados em uma muleta, para se juntarem a nós.
  Já sofreram uma vida inteira e ainda terão que passar por mais esta, só para adiar a morte. Cruel, me coloquei no lugar deles.
  E não parou por aí. Antes de desistirmos de continuar na espera, ainda tivemos tempo de ver uma mulher chegando desesperada com uma criança no colo.
  A criança estava com a pele toda pipocada e avermelhada. Parecia Sarampo. Era um menino e segurava entre os seus dedos miúdos, um retalho de pano. Fazendo dele o seu único brinquedo.
  Enquanto isso, na fila, as pessoas entre si, realizavam sua própria consulta. Cada um contava de uma doença que teve e como foi tratada, levando uma gota de esperança para os enfermos que escutavam. Faziam de graça e com qualidade, aquilo que o Estado faz um descaso.
  Ao ver tudo aquilo, minha mulher foi naturalmente melhorando. Era impossível ver que existiam pessoas em situação pior e não melhorar. Talvez fosse isso, o que o único médico em plantão esperava. Talvez, também, esse fosse o “plano de saúde pública” que o Governo pôde nos oferecer.
  Antes de deixar para trás o hospital, percebi na saída, olhando para o estacionamento, que mais gente chegava ao local.
  O hospital era público, porém, as pessoas chegavam de carro zero. De todos os tipos. De vários modelos e cores, todos com potência acima do ultrapassado 1.0.
  Aquelas pessoas não viam importância em ficar duas ou três horas na fila de um hospital público, desde que estivessem seguras em seus automóveis. 
  Ao lado da minha mulher eu pensei – É dever do Estado dar boas condições de saúde ao seu cidadão, mas o povão esta indo ao hospital público de carro do ano.
  Por outro lado, também pensei – O mesmo povão também tem direito á um transporte decente e mais confortável para a sua família. E não faz diferença nenhuma se o carro é novo ou não. Ainda mais quando os poucos “bons hospitais” existentes, estão concentrados no centro da cidade.
  Meus pensamentos ficaram confusos. Não consegui concluir se é a falta de investimento na saúde e no transporte, ambos públicos, ou se é a soberania do controle consumista, dominando a frágil alma do povão.
  Desistimos de passar em consulta com o médico e fomos embora do hospital.
  Minha mulher tinha melhorado só de observar a dor daquelas pessoas. Incrível como o sofrimento alheio tem poder de cura.
  Conhecíamos no nosso bairro, um Curandeiro que não cobrava nada pela consulta e ainda poderia nos atender sem fila de espera, em uma cadeira menos desconfortável do que o banco do hospital.   
  Rumamos para lá. Sem dor, sem consulta marcada.


Sérgio Silva, Setembro 2010.