Saí do consultório morrendo de sede. Minha língua estava grudando no canto da boca, completamente seca, por causa do tempo que fiquei sem beber água. Mais de quatro horas. Este era o pré-requisito para poder realizar o exame. Muitas vezes, quatro horas pode não parecer nada, mas no meu caso, da forma que passei, é para ser escrito. Imagina um dia com a temperatura acima dos vinte e oito graus e você trabalhando pendurado em um telefone, discutindo com os clientes, falando mais de quinhentas palavras por minuto, trancado em uma sala com o ar condicionado quebrado e sem poder beber se quer um gole d`água? Fácil? Não! Passar por isso é muito foda!
A noite estava convidativa. Passado o sufoco e com o exame realizado, pensei: Agora é a minha vez. Vou acabar com esta sede tomando uma cerveja bem gelada, no primeiro bar que eu encontrar. Sozinho mesmo. Quando estou na chuva é para me molhar. Mas aí lembrei que precisava comprar um livro. Uma lâmpada acendeu sobre a minha cabeça e Pin! É isso! Compro o livro e depois sento para ler tomando uma cerveja. Quem sabe, talvez até duas.
Fui até a livraria de um shopping burguês com um nome francês que não consigo pronunciar direito. Era o local mais próximo do consultório e como estava sem opção, desci a avenida em direção ao Shopping. Não gosto de entrar em shopping Center a não ser para comer ou usar o banheiro. Sinto uma coceira por todo o corpo quando olho para as vitrines com aqueles manequins cor de pele. Pelo menos eu teria uma vantagem indo naquele lugar: a localização era em um ponto estratégico para voltar para casa. Além do que, estaria ao lado do SESC Pompéia, um ótimo local para sentar, ler um livro e tomar uma cerveja.
Cheguei à livraria e fui logo perguntando sobre o livro do Manoel de Barros, Ensaios Fotográficos, para a primeira mocinha que encontrei. Enquanto ela fazia a pesquisa no computador eu ouvia o mp3 do Jorge Ben e batucava com os dedos na mesa do balcão. Senti que ela estava curiosa para saber o que eu ouvia, então, soltei um pedacinho da letra em voz baixa, para matar a sua curiosidade logo de uma vez. Todo mundo tem curiosidade de saber o que o outro está ouvindo, isto é fato. Em troca ela me disse que não tinha o livro por que estava fora de catálogo há mais de quatro meses. Pensei com os meus miúdos: Shopping Center não serve nem para comprar um livro. Se tivesse um sebo aqui por perto, com certeza, o vendedor me daria outra resposta. Enfim, como já havia arquitetado um plano para aquele resto de noite, decidi não deixar a falta do Manoel de Barros estragar com tudo. Falei para a moça do atendimento que levaria outro livro.
-Moça? Li o nome dela no crachá começando com três consoantes, mas não tive coragem de pronunciar.
-Ela, pois não senhor.
-Então, você tem o do Ferréz?
-Ela, qual?
-O Capão Pecado. Acho que é o primeiro dele.
-Ela, deixe-me ver.............humm.............aqui não, mas consigo amanhã pra você.
-Quanto custa?
-Ela, tanto!
-Eu disse: Estou com muita sede, pra amanhã esta caro. Preciso ler alguma coisa agora.
-Ela, bom......sendo assim........
Ela entendeu a minha necessidade e me ofereceu outro livro do cara. Mesmo sem os Ensaios Fotográficos e o Capão Pecado, saí contente da loja. Até que enfim iria ler um livro do Ferréz. Já tinha lido um texto e uma entrevista dele para uma revista. Gostei muito da idéia do cara. A partir daí, ele já tinha entrado na minha lista de leituras obrigatórias antes de morrer. Eu tenho disso. Conforme vou conhecendo novos escritores, uma lista começa a se formar na minha cabeça. Fica tudo guardado e quando aparece uma oportunidade, a lista vem à tona.
A maior contradição acabará de acontecer comigo. Comprei o livro do Ferréz na livraria de um shopping burguês pra caramba, em plena na zona nobre de São Paulo. Desde quando criei a lista, pretendia comprar o livro das mãos do escritor. Queria o livro direto da sua origem. Uma pena que a oportunidade não veio.
A vida é assim mesmo, cheia de contradições. Mas aí, pensando bem, esta contradição até que teve algo de interessante. No meio da burguesia eu podia encontrar uma linguagem que me dizia a respeito. É sinal que a classe marginalizada esta tomando o seu espaço de direito e adquirindo o seu devido reconhecimento. Isto sim não tem preço!
Desci a escada rolante comendo as páginas do livro. A cada linha lida era uma paulada na cabeça e as contradições em minha vida iam aumentando. Ainda mais depois da cena que eu vi. Um cara dentro de um salão de beleza estava sentado em um banquinho com uma das pernas esticadas e um Tribal enorme tatuado. O cara fazia as unhas como se fosse uma dama. Puta cena estranha! Sem contar com o desfile de homens mais velhos com mulheres mais novas. Cruzou na minha frente um cara barrigudo e careca, de mãos dadas com uma linda morena de olhos claros. A mina era tipo modelo de capa de revista de moda. Sem pré-conceitos, mas aquilo era amor, a filha dele ou mais uma contradição tentando salgar ainda mais a minha boca?
Deixei aquelas esquisitices para trás e cheguei ao Sesc no limite da sede que um ser humano pode agüentar. Com um pouco de pressa tomei um pouco de água para enganar os rins e em seguida pedi duas latinhas para acabar de vez com a maldita. Refleti um pouco sobre como uma criança na seca do nordeste pode suportar a falta de água por tantos dias. Eu que já era um adulto acostumado a andar pelas ruas escaldantes de São Paulo não estava mais agüentando, imaginem elas no meio daquele sertão todo. Cada uma rezando uma prece diferente para que o céu mande uma gota de chuva.
Depois deste pensamento perturbador, tive a consciência de que aquelas horas que passei com sede não significavam nada.
Relaxei. Escolhi uma mesa vazia e devorei ali mesmo, tomando minha cerveja gelada, mais um livro em minha vida.
Sérgio Silva,
Vila Jaguara, Setembro de 2010.